CRÔNICA DO COTIDIANO DE UM PROFESSOR: A VENDA E AS LIÇÕES QUE OS LIVROS NÃO ENSINAM.

11:13 Professor José Luiz 0 Comments


No início dos anos 1990, quando abracei o magistério, já carregava comigo uma vida múltipla, como sempre foi meu costume. Nunca me contentei com uma única função — talvez porque, desde cedo, tenha aprendido que a vida exige mais do que especialização, exige vivência. Enquanto lecionava, além de trabalhar como eletricista residencial, também ajudava meu pai na venda da família, um pequeno empório que era o coração da nossa comunidade rural. 

Ali, entre prateleiras de mantimentos, garrafas de cachaça, baralhos e o ranger constante da mesa de sinuca, eu encontrava meus alunos, seus pais e todos os rostos cansados daquela gente que lutava com a terra e com a vida. A venda não era apenas um comércio; era um ponto de encontro, um confessionário secular onde as histórias se misturavam com o cheiro de fumo, do inebriante odor do álcool, do salgado frito e o tilintar de copos. 

Foi naquele lugar, entre os bêbados de plantão e os viciados em jogos, que aprendi uma das lições mais valiosas: a dignidade não escolhe endereço. Meu pai, homem simples mas de convicções firmes, sustentava a família graças àqueles homens sofridos que gastavam seu pouco dinheiro, com cédulas amassadas, em um gole de álcool ou em uma cartela de cigarros. E ele nunca os julgou. Pelo contrário, ensinou-nos a respeitá-los, pois eram eles — com seus vícios e suas dores — que pagavam nosso pão e, mais que isso, financiavam nossos estudos. 

— Filho, o conhecimento é a única riqueza que ninguém pode roubar — dizia ele, entre um café e um pedaço de bolo quente – daqueles bem altos e fofos – que só minha mãe sabia confeccionar. E eu acreditava. Acreditava tanto que, quando encontrava meus alunos ali na venda, entre um refrigerante e um pacote de bolacha, reforçava a mensagem: "Estudem. A vida pode ser dura, mas as portas que a educação abre não enferrujam, meninos!" 

Na sala de aula, eu era o professor. Na venda, era o filho do seu Jesus Cardoso, o mesmo que vendia pingas e ouvia desabafos, que confiava, até mesmo em recém-chegados, e entregava os mantimentos para serem pagos no início do mês seguinte. Os dois espaços, aparentemente opostos, a bem da verdade se complementavam. Enquanto os livros me ensinavam teorias, a venda me mostrava a prática. Enquanto a escola falava de futuro, o balcão do meu pai exibia o presente cru de quem mal tinha tempo para sonhar. 

Hoje, quando olho para trás - há tempos o Empório Beija-flor cerrou as portas, vejo  que aquela venda foi minha segunda escola. E os bêbados, os viciados, os trabalhadores de mãos calejadas? Foram meus primeiros mestres. Ensinaram-me que a vida não cabe em fórmulas prontas, em regras frias, e que, às vezes, é no meio do barulho da sinuca e do cheiro de cachaça que a gente aprende tanto. 

E eu, que ali fui mais aprendiz que professor, sigo levando essas histórias para a sala de aula — porque educação, afinal, também se faz com vivências e memórias.

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