CRÔNICA DO COTIDIANO DE UM PROFESSOR - TREIÇÃO: A TRAIÇÃO DO BEM!
Era uma manhã fresca, de um outono qualquer, nos anos 1990. dessas em que a névoa ainda se debruça sobre os campos como um véu tímido, quando o aluno, depois de enfrentar quilômetros a bordo de uma perua escolar, chegou à sala de aula com os olhos brilhando. Não era o brilho efêmero de quem traz uma novidade banal, mas a luz serena de quem testemunhou algo maior. "Professor", disse ele, "hoje vi o que é gente de bom coração". E começou a contar.
Havia compreendido o verdadeiro
sentido da palavra “humanidade”. Seu pai, homem da terra, das mãos calejadas e
do sorriso escasso, andava há meses enfermo. A lavoura, outrora vigorosa, agora
murchava à espera de braços que não chegavam. As contas se acumulavam, e o
cansaço — aquele que dói na alma — já se instalara como sombra permanente. Até
que, naquela madrugada, por volta das cinco horas, o silêncio da roça foi
quebrado por um rumor distante. Primeiro, o ronco de tratores; depois, vozes,
risadas, o tilintar de ferramentas e até mesmo fogos espocavam em meio aos
pastos.
Era a "Treição", um termo antigo, corruptela de "traição", mas sem nenhuma maldade. Ao contrário: carregava em suas sílabas a doce surpresa da solidariedade. Trinta, quarenta pessoas — amigos, vizinhos, até desconhecidos — invadiram a propriedade como um exército de bons samaritanos. Trouxeram máquinas, enxadas, sementes e, sobretudo, boa vontade em estado puro. "Viemos fazer a lavoura no seu lugar", disseram ao pai, que, atordoado, olhava aquela multidão de mãos estendidas e lágrimas nos olhos, coisa muito rara naquele homem rude talhado na dor e na labuta diária e estafante da roça.
No final, o pai do aluno, homem de poucas palavras, resumiu tudo em uma frase: "Nem precisei pedir". E é assim que a vida nos ensina as lições mais profundas: os melhores presentes são os que chegam sem aviso, os que transformam a necessidade em gratuidade, o desespero em esperança coletiva.
A "Treição" não deveria virar peça de museu, singelos relatos da memória. Deveria continuar a surpreender — não às cinco da manhã, mas em horários ainda mais inesperados: o momento exato em que a fé na humanidade parece prestes a murchar, nas horas em que a alma clama por aconchego, e pedimos um abraço que conforta e acolhe. Afinal, como dizia o mestre Guimarães Rosa: "O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia". E que travessia seria essa sem as mãos que nos conduzem, nos puxam para frente?
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