CRÔNICA DO COTIDIANO DE UM PROFESSOR - TREIÇÃO: A TRAIÇÃO DO BEM!

14:53 Professor José Luiz 0 Comments


 

Era uma manhã fresca, de um outono qualquer, nos anos 1990. dessas em que a névoa ainda se debruça sobre os campos como um véu tímido, quando o aluno, depois de enfrentar quilômetros a bordo de uma perua escolar, chegou à sala de aula com os olhos brilhando. Não era o brilho efêmero de quem traz uma novidade banal, mas a luz serena de quem testemunhou algo maior. "Professor", disse ele, "hoje vi o que é gente de bom coração". E começou a contar. 

Havia compreendido o verdadeiro sentido da palavra “humanidade”. Seu pai, homem da terra, das mãos calejadas e do sorriso escasso, andava há meses enfermo. A lavoura, outrora vigorosa, agora murchava à espera de braços que não chegavam. As contas se acumulavam, e o cansaço — aquele que dói na alma — já se instalara como sombra permanente. Até que, naquela madrugada, por volta das cinco horas, o silêncio da roça foi quebrado por um rumor distante. Primeiro, o ronco de tratores; depois, vozes, risadas, o tilintar de ferramentas e até mesmo fogos espocavam em meio aos pastos.

Era a "Treição", um termo antigo, corruptela de "traição", mas sem nenhuma maldade. Ao contrário: carregava em suas sílabas a doce surpresa da solidariedade. Trinta, quarenta pessoas — amigos, vizinhos, até desconhecidos — invadiram a propriedade como um exército de bons samaritanos. Trouxeram máquinas, enxadas, sementes e, sobretudo, boa vontade em estado puro. "Viemos fazer a lavoura no seu lugar", disseram ao pai, que, atordoado, olhava aquela multidão de mãos estendidas e lágrimas nos olhos, coisa muito rara naquele homem rude talhado na dor e na labuta diária e estafante da roça.

 E ali ficaram. Trabalharam até o sol se recolher, sob o mesmo céu que um dia testemunhara colheitas mais prósperas. Levaram café, farofa, carne — o banquete simples dos que sabem repartir. Ninguém reclamou do suor, do barro nas botas ou do cansaço. Riram, contaram causos, e a lavoura, que antes parecia uma sentença de fracasso, renasceu em linhas retas de terra revolvida. 

O aluno, ao narrar a cena, parecia carregar um segredo sagrado, afinal, foi como se Deus tivesse mandado um exército de anjos de boné e botina. E eu, ouvindo, lembrei de quantas "treições" assim já se perderam no tempo, sufocadas pelo individualismo de dias turbulentos. Aquele gesto não era apenas ajuda; era um ato político de resistência, de união, de solidariedade, um lembrete de que comunidade ainda existe — não como abstração, mas como mãos que se unem para semear o impossível. 

No final, o pai do aluno, homem de poucas palavras, resumiu tudo em uma frase: "Nem precisei pedir". E é assim que a vida nos ensina as lições mais profundas: os melhores presentes são os que chegam sem aviso, os que transformam a necessidade em gratuidade, o desespero em esperança coletiva. 

A "Treição" não deveria virar peça de museu, singelos relatos da memória. Deveria continuar a surpreender — não às cinco da manhã, mas em horários ainda mais inesperados: o momento exato em que a fé na humanidade parece prestes a murchar, nas horas em que a alma clama por aconchego, e pedimos um abraço que conforta e acolhe. Afinal, como dizia o mestre Guimarães Rosa: "O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia". E que travessia seria essa sem as mãos que nos conduzem, nos puxam para frente?

 

 

0 comentários: