CRÔNICAS DO COTIDIANO DE UM PROFESSOR - UM SAPATO QUE FICOU NA MEMÓRIA
No início de minha jornada de 35 anos como educador, já tentava ser bem mais do que um simples transmissor de conhecimento. Sempre tentei ser um professor-artista que molda mentes e corações. Em minhas aulas, busquei levar os conteúdos com entusiasmo e generosidade, criando um ambiente onde a curiosidade pudesse florescer. Mas um episódio, dentre tantos, em particular, ficou gravado em minha memória, como se fosse a primeira pincelada em uma tela em branco.
Em um tarde ensolarada, era dia de provas, uma sala com um ventilador moroso, de uma pequena escola rural. O cheiro do papel fresco e do álcool do mimeógrafo – instrumento que ajudava tanto os professores a rodar suas provas e trabalhos, em época de pouquíssima tecnologia – preenchia a sala, enquanto os alunos, com expressões variadas de ansiedade e concentração, lutavam com as questões. Entre eles, estava uma menina esperta, uma adolescente que, por diversos motivos, sempre se esforçava para se sair bem. Com os olhos fixos na folha, ela tinha preenchido todas as respostas, exceto uma: a tradução de "shoes". A caneta parou, seu coração disparou.
E ali, atento aos pequenos detalhes, percebi sua inquietação. Aproximei-me discretamente da mesa da aluna e, assim que nossos olhares se cruzaram, notei os sinais claros de desespero. O pé da garota batia no chão, num ritmo frenético, como se suplicasse uma resposta que, no fundo, ela sabia – ou melhor, costumava saber.
Inconformado, comecei começou a repetir, quase como um mantra: “Não é possível que você não saiba a tradução desta palavra”. Com cada batida de meu pé, eu não apenas expressava desapontamento, mas também queria ali fornecer um incentivo implícito, uma dança entre o ensinar e o aprender. “Pense, menina!”, e continuava a bater o pé no piso avermelhado. Tentei comunicar, sem revelar a resposta. A mente da menina, presa em tropeços de insegurança, começou a clarear.
Após alguns instantes que pareciam eternos, os olhos dela brilharam. “Sapatos!” sussurrou baixo, para que os colegas não ouvissem a resposta, com um sorriso, como se tivesse emergido de uma nuvem de neblina. Aquele momento para mim foi luz, a luz do conhecimento. Não era apenas a resposta que importava; era a compreensão, o aprendizado que acontecia ali. Eu sempre acreditei que a avaliação não é apenas um teste, uma mera formalidade para obtenção de notas, mas sim um momento rico de aprendizagem. Acredito que tenha atingido meu objetivo, conseguindo, com sutileza, deixar uma marca na memória daquela jovem.
Trinta anos se passaram, e um dia, tive o privilégio de reencontrar essa
ex-aluna, em uma reunião de fim de bimestre. Ela era mãe de uma aluna da escola
onde leciono. Após tanto tempo de magistério, hoje, acreditem, sou professor
até mesmo de netos de ex-aluna. Agora, essa menina cheia dos receios pueris da
adolescência tinha se tornado uma mulher confiante e realizada, e se aproximou
com um sorriso nostálgico. “Professor, nunca me esqueci daquele dia. O senhor
estava tão preocupado em me ensinar que fez com que eu aprendesse de verdade e
nunca mais me esquecesse”. Dizendo isso, ela repetiu a história e de como o
fato marcou em sua memória. Aquela frase ecoou em meu coração, como tantas que
tenho tido a alegria de ouvir sobre as experiências vividas com meus ex-alunos
em sala de aula, desde estudantes da mais tenra idade até aqueles que
frequentaram os bancos universitários, por onde passei como professor.
Só me restou sorrir, em gratidão, completando aquela conversa nostálgica
e bonita entre professor e aluna. Ela havia seguido adiante, mas a mensagem de
cuidado e empenho tinha ficado. Sempre vislumbrei, em minha carreira, que meu
papel não se reduzia a atividades mecanizadas, repetitivas, de apenas preencher
papeis, aferir desempenhos. A missão do professor vai muito mais além e do que
apenas aplicar, corrigir provas e lançar notas em diários, cumprindo uma função
burocrática e fria. A missão do professor é bem maior, pois se presta a
iluminar caminhos. O professor não é a “luz no fim do túnel”; o professor,
quando se coloca no real sentido da educação, que é arte, vida e poesia, é a
própria luz. E, ao olhar para aquela mulher, compreendi a dimensão de nosso
trabalho e, de certa forma, percebi que havia conseguido. Ao tocar a vida de um
aluno com cuidado, podendo muitas vezes, fazer cócegas na alma destes seres em
construção – como todos nós – eu havia
escrito uma bonita história que ecoaria através do tempo. Quanto beleza em
nossa árdua tarefa transformadora que ainda vai durar um tanto bom.
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