A SAUDADE, NOSSA SENHORA DO TEMPO. (CRÔNICA)
Saudade é uma dor que não sangra, mas lateja. Uma prova de que vivemos — e, mais raro ainda, de que vivemos bem. Hoje, sem motivo aparente, deixei-me levar pelos fios da memória até os anos 1980, quando a juventude ainda se permitia ser ingênua, despretensiosa, cheia de ilusões que não cabiam no bolso, mas enchiam a alma.
Saíamos em grupos — uns de namorada no braço, outros só com o coração batendo mais forte — para as noites da discoteca do Joaquim, das quermesses, dos forrós nas fazendinhas da região. A noite acabava à meia-noite. Hoje, essa é a hora em que ela começa. E que ninguém se engane: não é só o relógio que mudou.
A Festa do Peão era nosso grande rito de passagem. Maio chegava com cheiro de poeira, suor e alegria, tudo misturado. Nas tardes, os touros davam espetáculo — considerado, à época, um programa de segunda, pois a nobreza mesmo ficava para as noites, quando os cavalos e os peões de nome entravam na arena. Os locutores da tarde eram homens do povo, de voz grossa e dicção peculiar: "deceputa" no lugar de disputa, "seletor" no lugar de refletor. Ninguém corrigia. Era assim que a gente gostava.
De madrugada, a alvorada nos arrancava da cama. A bandinha e os violeiros percorriam as ruas ainda escuras, despertando a cidade com música e foguetes. Pelas cinco da manhã, o céu estalava de luz, e o povo, sonolento mas feliz, seguia em procissão até o recinto, onde o padre já esperava para a missa de abertura.
Tínhamos nossos heróis — peões cujos nomes ecoavam nas arquibancadas de madeira. Torcíamos, discutíamos, apaixonávamos. Quantos casais nasceram ali, entre olhares furtivos e mãos que se encontravam por acaso? Até os poemas eram escritos em guardanapos, nas barracas onde terminávamos as noites, com um lanche qualquer e o coração cheio.
Os shows eram o ápice. Artistas regionais dividiam o palco com nomes que mal sabíamos estar diante de futuras lendas. Tião Carreiro e Pardinho cantando no alto de um carro de boi. Leonardo, engolindo um mosquito no meio da música. Barrerito, carregado ao palco por uma legião de homens, sua cadeira de rodas erguida como um troféu. E o misterioso Elton Jr., recolhido em um Opala preto antes de subir ao palco. Até João Paulo e Daniel, ainda bem jovens, jogaram sinuca, sem camisa, no bar do João Cecílio, e ficaram hospedados na pensão do Galego.
O figurino era obrigatório: chapéu, bota, cinto com fivela do tamanho de um prato, camisas que pareciam feitas para brilhar sob as luzes dos refletores — ou dos "seletores", como dizia o locutor local. E quando um boi escapava dos bretes, invadindo a barraca do Zé Novato, o susto virava história para contar no ano seguinte.
Na segunda-feira, o baile da saudade encerrava a festa. Era quando a melancolia chegava, devagar e sem pedir licença. Levávamos dias para nos recuperar. Mas que importa? Éramos um povo pioneiro, que transformava o lazer em epopeia e a alegria em coisa séria.
Cada segundo daqueles valeu a pena. Cada sorriso, cada aperto de mão, cada grito nas arquibancadas. Tudo ficou guardado não só na memória, mas no jeito de ser de quem viveu aquilo tudo. Histórias bonitas não se apagam. Elas apenas se recolhem, quietinhas, até o dia em que a saudade as chama de volta.
E então, como agora, elas voltam — inteiras, vivas, e mais intensas do que nunca.
0 comentários:
Postar um comentário