CRÔNICA DO COTIDIANO DE UM PROFESSOR - O MILAGRE DAS PEQUENAS ALEGRIAS
Era uma manhã de terça-feira, dessas em que o céu acorda preguiçoso e o sol demora a espantar o frio do inverno em nossa escola rural, onde cada dia nos presenteia com um nascer e pôr do sol que parecem pintados à mão. A sala do 9º ano, com suas mentes e almas recheadas de sonhos adolescentes, estava mais silenciosa que o costume. Até que, naquela manhã, com os olhos e o coração já umedecidos de poesia, propus um exercício simples: "Escrevam, em três linhas, a coisa mais bonita que viram no caminho para a escola hoje... ou nos últimos dias."
Houve um murmúrio desconfiado. Alguns reviraram os olhos, outros se afundaram nas carteiras, como se a felicidade fosse um tema perigoso. Foi então que um dos meninos - daqueles que sempre chegam atrasados, com o uniforme amarrotado e os cadernos meio desfeitos - ergueu a mão sem cerimônia: "Professor, eu vi um tamanduá-bandeira atravessando o pasto e indo beber água no rego d'água ali perto."
A sala parou. Alguém soltou um "mentira!" abafado, mas o garoto, sério como um juiz de futebol, jurou de pé junto que era verdade. E então, como num passe de mágica, os outros começaram a falar, sentindo-se encorajados pela ousadia do colega. Uma aluna lembrou do senhor que vende balas no semáforo em Frutal, aquele que sempre tem um "bom dia" e frases bonitas escritas num quadro improvisado preso ao poste, mesmo nos dias mais frios. O outro contou do beija-flor que bebeu água no bebedouro do corredor, com suas asas vibrando como um coração alado. Uma outra mocinha sorriu ao descrever o cheiro de pão quente que escapa da padaria da esquina todas as manhãs, perfumando toda a rua. E um menino morador de uma fazenda perto do distrito, antes de me entregar uns exemplares, falou dos abacates amarelos que tinha no sítio recém adquirido de seu pai.
Sem dizer nada, escrevi no quadro a frase de Guimarães Rosa: "Felicidade se acha é em horinhas de descuido". E naquela manhã, entre risos e histórias miúdas, nossa sala de aula - tão cheia de desejos não ditos e dores escondidas - transformou-se num lugar sagrado. Porque o milagre não estava no tamanduá, no baleiro poeta ou no pão quente, mas no modo como as pequenas alegrias, quando compartilhadas, viram festa.
Quando tocou o sinal do recreio,
ninguém saiu correndo como de costume. Ficaram um tempinho a mais, como quem
não quer perder os últimos instantes de um espanto que, sabemos bem, raramente
se repete da mesma forma.
0 comentários:
Postar um comentário