CRÔNICA DO COTIDIANO DE UM PROFESSOR - O PRESENTE INESPERADO
Vivi inúmeras situações inusitadas e, por vezes, emocionante em minha trajetória também como gestor educacional. Era uma manhã qualquer na Secretaria de Educação, nos idos de 2005. Meu gabinete, como de costume, estava de portas abertas, uma política que adotei desde o primeiro dia. Acreditava que a gestão pública só se fazia verdadeiramente pública quando as pessoas podiam entrar, sem cerimônias ou barreiras, e falar olho no olho com quem tomava as decisões.
Foi assim que um casal chegou. Ao
avistá-los na recepção, levantei-me, cumprimentei-os e os conduzi até as
cadeiras, como sempre fazia. Perguntei, com a calma de quem já sabia que dali
poderia sair de tudo, desde uma simples
dúvida até uma crise imprevista.
O homem, chapéu de palha apertado
entre as mãos calejadas, respondeu com aspereza:
— "Nada está bem, não, seu
secretário. Viemos é pra reclamar e cobrar um direito!"
A mulher, ao seu lado, não dizia uma palavra,
mas o silêncio dela era eloquente. Cada movimento de cabeça, cada olhar baixo,
confirmava e concordava com cada sílaba dura que o marido pronunciava.
Era sobre o transporte escolar da
filha. O "perueiro", assim chamavam o motorista, havia se recusado a
buscar a menina no ponto mais próximo da propriedade deles, alegando que a
estrada era ruim, que o veículo não aguentava, que o trajeto atrasaria os
outros alunos. Argumentos até compreensíveis, mas que, na prática, significavam
mais tempo de caminhada para uma criança sob sol ou chuva.
Ouvi tudo com atenção. Sem delongas,
peguei o telefone, liguei para o responsável pelo setor e orientei, em tom que
não deixava margem para negativas:
— "O transporte vai passar no
ponto combinado. A menina é prioridade. Ajustem a rota, por favor."
O casal, que até então carregava o
peso da indignação nos ombros, mudou de semblante num piscar de olhos. Os
lábios, antes franzidos, abriram-se num sorriso desconcertante. Os olhos, antes
cheios de desconfiança, brilharam como se tivessem recebido uma promessa de
milagre. Agradeceram com palavras simples e foram embora, voltando para a
labuta do campo.
Uma semana depois, eis que o mesmo
homem reaparece no meu gabinete. Desta vez, trazia consigo um saco plástico
robusto, daqueles usados para carregar sal grosso para o gado. Dentro, um
volume generoso. Antes que eu pudesse perguntar, ele estendeu o pacote com um
misto de orgulho e timidez:
— "É uma banda de leitoa. Criada e abatida em casa. A gente quis agradecer."
Fiquei sem reação. Não era todo dia
que um gestor público recebia um presente assim, muito menos em plena
segunda-feira de manhã. Agradeci, mas expliquei que, como ficava na cidade
apenas durante a semana, não teria como aproveitar a carne. Então, fiz um
pedido:
— "Leve ao asilo. Não precisa
dizer que fui eu quem mandou. Só quero que os velhinhos aproveitem."
Eles aceitaram, sem hesitar. Saíram
dali com a mesma dignidade com que haviam chegado, levando no olhar a
satisfação de quem cumpriu um dever moral.
Naquele gesto singelo, havia mais do
que uma parte de uma leitoa. Havia a essência de um povo que, mesmo quando
desacreditado pelo poder público, ainda acredita na reciprocidade. Gente que
não espera discursos pomposos, mas ações concretas. E que, quando vê uma delas,
retribui da única forma que sabe, com honestidade e generosidade.
Enquanto o casal sumia no corredor,
lembrei-me de uma verdade que a burocracia muitas vezes esquece: a melhor
gratidão não vem em forma de elogios ou reconhecimento público, mas na
simplicidade de um presente inesperado, entregue com as mãos calejadas de quem
trabalha e acredita.
E, naquele dia, eu me senti menos secretário e mais gente, menos autoridade e mais humanizado.
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