CRÔNICA DO COTIDIANO DE UM PROFESSOR - DESEJOS...
Era uma manhã fria, com tempo leitoso, ali na sala dos professores, entre uma xícara de café e um amontoado de provas não corrigidas, parei para ouvir o pássaro que cantava em uma das árvores que um dia plantei, logo ali no pátio à frente da enorme janela. O passarinho não tem planilhas de chamada, não se angustia com o calendário de reuniões pedagógicas, nem tem prazos a cumprir. Cantarolava, livre, enquanto a gente ali conversava, contando os planos para o próximo feriado. (Essas árvores, plantei quando diretor da escola. E naquele momento, um longo tempo depois, serviam ainda para abrigar meu carro, usufruindo da boa sombra.)
Há quem diga que devemos ser como pássaros — sem desejos, sem amarras. Mas como não desejar quando a menina tímida do 7º ano entrega um poema rabiscado em uma folha de caderno ainda com as borda de espiral, surpreendendo pela qualidade e beleza? São esses frágeis milagres cotidianos que me fazem desejar mais: mais tempo, mais recursos, mais dias para ver germinar o que plantamos.
O relógio da escola, aquele mesmo que atrasa cinco minutos desde que me entendo por professor, insiste em nos lembrar: tudo urge. Corremos contra o cronograma, engolimos merenda sem apreciar o gosto, como muitas vezes fazemos empurrando conteúdos como quem simplesmente “cumpre tabela”. E no meio disso, esquecemos de parar para pensar sobre o aluno que falta tanto, vítima de tantas misérias humanas, e que trouxe um desenho de um anime, todo colorido, uma maneira peculiar de dizer "voltei".
Sim, a ansiedade bate à porta. São documentos, burocracias que nunca acabam mas acabam conosco, projetos a serem tirados da gaveta ou aquele livro que prometi ler e ainda não tive tempo. Mas também há a alegria repentina de ouvir um "valeu, professor!" daquele aluno que conseguir bater asas, voar para além de suas porteiras, um orgulho de ver agora homens e mulheres que ousaram e foram longe, muito longe.
A morte pode esperar. Enquanto isso, vivo entre riscos de lápis quebrado e sonhos inteiros demais para caber em fórmulas pedagógicas. Desejo? Desejo tudo, mas hoje, aqui na sala dos professores, desejo apenas que o sinal toque e eu ainda tenha histórias para contar, misturadas à sintaxe, às normas ortográficas ou as interpretações de textos.
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