CRÔNICA DO COTIDIANO DE UM PROFESSOR: O ZELADOR DA ALMA!
Uns bons anos atrás, afastei-me por trinta dias. Um mês inteiro de ausência. Para mim, foi quase uma eternidade, incertezas e a lenta reconquista da calma e da paz de espírito. Para o mundo, parece ter sido apenas um piscar de olhos. Ao retornar à escola, esperava, não sei bem o quê, talvez um "espero que esteja melhor", ou um "sentimos sua falta". A realidade, essa mestra implacável, foi mais sóbria.
Os corredores estavam os mesmos, o cheiro de giz e merenda escolar, o burburinho familiar. Sequer notaram meu retorno, o “bom dia” soou gelado. Era como se eu tivesse saído por cinco minutos para tomar um café, não para cuidar de um colapso silencioso que ameaçou meu equilíbrio. A máquina escolar é assim: engole ausências e cospe normalidade, sem mastigar.
Entrei na sala de aula. E então, o mundo virou de ponta cabeça. Um coro de "Professor!", sorrisos largos, olhos brilhantes. "Sentimos tanto a sua falta!" Palmas espontâneas que ecoaram no meu peito e reabasteceram meus ânimos. Aqueles jovens, tantas vezes distraídos em seus mundos digitais, foram os únicos a ver, de verdade, que um elo havia faltado na corrente. Aqueci-me por dentro, acreditando que talvez a humanidade não estivesse tão perdida.
Foi no ápice desse calor, observando os meninos e meninas fazendo as tarefas, que a lição mais profunda bateu à porta. Literalmente.
Era um som hesitante, familiar. Fui até lá e Arnaldo ali postado em frente à porta.
"Boa tarde, professor", disse ele com sua voz suave. "Tudo bem com o senhor?"
"Tudo, Arnaldo, obrigado. Estou voltando hoje."
"Eu sei, eu vi o senhor chegar. Fiquei tão feliz." Ele fez uma pausa, seus olhos bondosos fitando os meus com uma intensidade inesperada. "Fiquei preocupado com o senhor nos dias antes de sair. O senhor andava tão triste, tão calado... Diferente. É bom ver o senhor de volta, e com um sorriso no rosto outra vez."
Antes que eu pudesse articular qualquer resposta, ele acrescentou um "Cuide-se, professor. Se precisar de mim, sabe onde me achar" e retirou-se, puxando suavemente a porta, deixando para trás apenas o silêncio e o eco de suas palavras.
Fiquei ali, paralisado. Arnaldo deixou ali uma enorme lição. Era o homem que varre nossos corredores, limpa nossas sujeiras, poda os jardins e cuida da horta. Era nosso zelador. Quantas vezes eu, absorto em meus problemas docentes, havia passado por ele com um mero aceno automático, sem realmente vê-lo? Quantas vezes o tratamos como parte do cenário, uma peça funcional e silenciosa do mobiliário escolar?
E no entanto, foi ele, o "invisível", quem enxergou o que ninguém mais notou. Enquanto eu me lamentava, em meu íntimo, pela frieza dos pares e gestores, Arnaldo me devolvia um espelho. Quantas vezes, sem perceber, eu também havia agido com a mesma indiferença? Quantos "Arnaldos" cruzam nosso caminho diariamente, os que servem nosso café, os que consertam nossos fios, os que coletam nosso lixo, e nós, em nossa arrogância funcional, sequer nos damos ao trabalho de mirar a alma que habita por trás de cada função?
Arnaldo, com suas mãos marcadas pelo trabalho pesado e sua alma leve como uma pluma, não me trouxe apenas um conforto. Ele me trouxe uma lição para a vida. Uma lição de humildade e de atenção. Ele me lembrou que a sensibilidade não mora nos cargos, mas nos corações. E que, muitas vezes, é nos olhares mais simples que encontramos o reflexo mais puro da nossa própria humanidade.
Enquanto pegava minhas coisas para ir embora, olhei para fora. Lá estava ele, na horta, regando as mudas de alface. Sorri, mais alegre ainda desta vez, ao levar para os dias futuros mais um raro ensinamento trazido por um homem simples, de bom coração.
CRÔNICA DO COTIDIANO DE UM PROFESSOR - "OS ATORES DO MAESTRO JOSINO"
O ano era 2001. Eu, recém-empossado no meu primeiro cargo, ainda com o coração aos pulos diante da grandeza da função, após uma década atuando como docente designado, ali na cidade de Frutal, na tradicional Escola Estadual Maestro Josino de Oliveira. O ar era de final de ciclo, daquela fadiga gostosa que precede as férias. Foi então que um grupo de professores, movido por um espírito brincalhão, resolveu montar uma esquete para a confraternização de fim de ano.
A ideia era uma paródia de um programa recém-chegado à TV, que todos comentavam. Criamos o Big Brother Estadual, uma sátira carinhosa onde fazíamos caricaturas engraçadas e jocosas dos profissionais que coloriam a escola naquele tempo. Tudo era feito de forma singela e respeitosa, longe de qualquer afronta, com a pura intenção de levar alegria e descontrair corações.
E lá estávamos nós, no palco do pátio da escola: eu, Clóvis, Paulão, Carlinhos e um convidado de luxo, o cantor Regis – um performático nato que, em seus momentos de glória, imitava com perfeição grandes divas da música internacional. Eu fazia o papel do apresentador do programa à época. Lá atrás, o diretor Waltão, com seu sorriso largo, "dava corda" para a nossa loucura, nos incentivando a soltar a voz e a criatividade. Ele sabia que aquele era um remédio raro contra o cansaço.
Foi uma noite especial, daquelas que se gravam na memória afetiva de uma comunidade. Trouxe leveza a uma classe muitas vezes assoberbada pelas tarefas cotidianas e pelo peso solene das responsabilidades. Foi mais do que uma brincadeira; foi um ato de resistência pela alegria, um suspiro coletivo em forma de riso.
Essa lembrança me veio à tona recentemente, ao receber uma fotografia daquele dia marcante, enviada por uma querida amiga, hoje diretora da escola. O registro congela o instante preciso em que eu entrava triunfal no palco, invadido pela persona do apresentador do fictício programa de TV. O rosto efervescente de um entusiasmo que só a entrega genuína consegue produzir.
Oh, coisa boa é deixar a mente viajar pela saudade bonita de um tempo já vivido. Mais do que boa, é necessário. É esse afeto que nos reabastece e nos lembra do porquê de cada lida diária e como vale a pena esta jornada de professor.
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